Michele Ferreira- Diário PopularMais duas suspeitas de improbidade administrativa recaem sobre a prefeitura de Piratini. Na edição de hoje, o Diário Popular traz uma delas, em que o secretário de Saúde, Diego Espíndola de Ávila, (foto abaixo) é acusado de se utilizar de convênio com uma Associação Comunitária para contratar profissionais sem qualquer tipo de processo seletivo. Uma violação ao que determina a Constituição Federal. O Ministério Público (MP) investigou o caso durante dois anos e ajuizou ação civil pública no dia 10 deste mês. A Promotoria Especializada de Rio Grande liderou as investigações. O MP pede a perda da função pública de Ávila - no cargo desde 2007 -, a suspensão dos seus direitos políticos e o pagamento de multa. A entidade também é ré no processo. O DP esteve em Piratini na sexta-feira, 13, deslocou-se ao 1º distrito, a 18 quilômetros da área central, e confirmou: a Associação Comunitária Venda da Lata não tem sede. Nunca teve. Ao chegar à localidade de mesmo nome, depois de conversar com moradores das redondezas, o que o Diário Popular encontrou foi a residência do presidente Daniel Fonseca de Oliveira.
Ao receber a equipe de reportagem, a mulher de Daniel, Solange, economizou nas palavras ao ser questionada sobre a localização e o funcionamento da Associação. Por duas vezes respondeu: "Isso é melhor tu perguntar para ele". Dali por diante, na tarde da mesma sexta-feira, o DP ouviu mais cinco pessoas e se viu diante de um jogo de passa e repassa, marcado pela falta de dados.
O que diz o Ministério Público?
A ação civil pública aponta: o secretário de Saúde, Diego Espíndola de Ávila, 37, teria se valido do cargo para decidir quem seria contratado e praticado dois atos de improbidade administrativa. Primeiro: delegava - teoricamente - a uma pessoa jurídica privada a contratação de pessoal. "O que é algo ruim. Um ilícito cometido por vários municípios e que temos discutido longamente para tentar corrigir", afirma o promotor de Rio Grande, José Alexandre Zachia Alan. Segundo: o próprio secretário operava o esquema, de modo a garantir que seus indicados conquistariam as vagas, sem qualquer tipo de seleção - assegura. "O fato de ele próprio operacionalizar, para assegurar o direcionamento, é algo péssimo. Muito grave. É o que o coloca ao alcance das sanções de improbidade administrativa". Diego de Ávila teria violado os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade, princípios da administração pública. Até o momento, entretanto, não há elementos para afirmar que tipos de acerto estavam em jogo. "O que podemos dizer, até agora, é de que os ganhos eram políticos", enfatiza a promotora de Piratini, Cristiana Chatkin, foto no topo da página.
A gravação feita por uma fonoaudióloga, que prestava serviços há cerca de cinco anos para prefeitura, confirma a negociação e evidencia a não realização de concursos públicos às áreas que seriam beneficiadas pelas contratações. A íntegra da conversa, de 2010, foi anexada à ação. Confira trechos:
- Secretário:
(...) Aí como é um valor muito alto, vai sair licitação. Aí eu digo: eu não sei quem vai fazer (o concurso). Vou correr o risco? Não. Aí eu tirei fono, tirei nutricionista, tirei assistente social (...)
- Fonoaudióloga:
Ah, tá. Porque assim eu tinha entendido que ia ter concurso.
- Secretário: Não, concurso tem, mas para essas áreas não tem.
- Fonoaudióloga:
Sim, porque (...) vai criar cargo de fono pra concurso, aí eu pensei, não daí eu vou ficar na mão porque não vai ter contrato o ano que vem, e aí (...)
- Secretário: Não, não vou criar cargo. Na verdade, eu tinha ideia até de criar se eu tivesse poder de barganha de dizer eu vou ficar com a (...) que eu quero que fique. Vou ficar com a (...), mas eu não tenho esse poder, então deixa pra outro, eu não vou fazer. Faltam dois anos só, por dois anos eu posso fazer contrato.
- Fonoaudióloga:
Porque daí o meu medo é assim, se eu saio de qualquer outro lugar e aí não rola, eu vou ficar (...)
- Secretário: Não, mas aí o que eu quero te dizer é o seguinte, eu vou te botar por essa Associação lá (...)
- Fonoaudióloga:
Prometido?
- Secretário: Compromisso meu.
..............
A palavra da fonoaudióloga
O Diário Popular conseguiu conversar com a fonoaudióloga, que não atua mais na região. Mora em Caxias do Sul e, ao lado do marido, irá abrir uma empresa no ramo veterinário. "Isso que aconteceu, me tirou o gosto. Sai descrente de tudo isso", resumiu. A santa-mariense, de 33 anos, começou a trabalhar em Piratini em 2006. Foi para o município da Zona Sul para prestar serviços a uma instituição de Educação Especial e, então, para "agregar valor", foi apresentada a integrantes do primeiro escalão da prefeitura e colocou-se à disposição.
Logo, teria surgido o convite. Acordo fechado, a fonoaudióloga trabalharia dez horas semanais e receberia R$ 1,2 mil. O pagamento? Efetuado por Recibo para Profissional Autônomo (RPA). Passados dois anos, com residência estabelecida em Pelotas e não mais na capital do Estado, a jovem começou a prestar serviços também às prefeituras de Canguçu e São Lourenço do Sul. "Foi quando comecei a ver que algo não devia estar certo. Nas outras duas cidades, eu trabalhava fora da estrutura da prefeitura, em um consultório meu e recebia por atendimento", destaca. "Em Piratini eu trabalhava em um posto de saúde e cheguei a trabalhar também em um Caps, exatamente como os funcionários. Só não recebia 13º salário", compara.
E, assim, foram-se cinco anos, com várias tratativas para a situação ser regularizada. Não haveria, entretanto, nenhuma outra forma legal além do concurso público. Com o pagamento atrasado há cerca de quatro meses – ela garante – e a oferta de ser contratada através da Associação Comunitária Venda da Lata, a fonoaudióloga decidiu procurar advogado. Fez a gravação das negociações, em 2010, entrou com ação judicial para cobrar os atrasados e, no dia que se desligaria da prefeitura, encaminhou cópia da conversa à Promotoria de Piratini.
"Por orientação do advogado, só assinei contrato com a Associação para poder anexá-lo como prova ao processo e, em poucos dias, pedi para sair", afirma. "Sabia que a promotora estava atrás desse tipo de situação e entreguei o CD". Agora, aguarda os cálculos para saber quanto irá receber da reclamatória trabalhista.
O que disseram?
* Secretário de Saúde
- Ao chegar à Secretaria na sexta-feira, 13 de setembro, o Diário Popular recebe a informação: Diego de Ávila está em férias. Ao solicitar que ligassem ao secretário, para a equipe de reportagem não perder viagem, um dos funcionários afirma: "Mesmo de férias, pela manhã, ele dá uma passadinha por aqui. À tarde ele aproveita para dormir um pouco". Era de tarde, por volta de 14h.
Ao falar, então, por telefone com o DP e tomar conhecimento do assunto, o secretário faz duas afirmações. Primeiro: "Não vou falar o que não sei. Tô sabendo por ti que a Promotoria finalizou o inquérito e ainda não fui notificado". Diante da insistência para uma conversa pessoalmente, Ávila argumenta: "Estou em uma ação de saúde no interior, a 86 quilômetros de distância, e não sei se vou chegar a tempo".
Ao ser indagado, então, via telefone celular, confirma a existência de convênio com a Associação Venda da Lata, mas garante que já existia em 2007, quando assumiu o cargo. O secretário não informa ao DP quantos profissionais foram contratados ao longo dos anos nem quanto saía dos cofres da prefeitura todos os meses. "É a Associação que faz o pagamento. O contador é quem pode saber". Ávila garantiu não saber sequer o nome do presidente da entidade.
Para explicar o porquê do convênio, argumenta que a medida foi adotada para viabilizar o pagamento de valores mais elevados e atrativos, como os que seriam destinados a médicos que receberiam R$ 14 mil por mês para cumprir 40 horas semanais. "Se pagássemos valores acima do salário do prefeito, seria inconstitucional. Fazendo dessa forma não é ilegal", sustenta e nega que tenha indicado quem seriam os contratados, em troca - em princípio - de ganhos políticos. "Estou na vida pública há 12 anos e nunca fui candidato, nem a vereador. Nunca tive interesse na vida política".
E vai adiante, ao defender que o assunto seria impertinente. "90% dos municípios usam esse artíficio através de policlínicas, convênios e hospitais em função da dificuldade de se fazer saúde pública".
* Promotoria Especializada de Rio Grande
- O promotor José Alexandre Zachia Alan diz que o Ministério Público está atento às terceirizações cometidas em toda a região e volta a destacar que o que torna o caso de Piratini grave seria o envolvimento do secretário. "Ainda que este caso da insconstitucionalidade esteja em discussão, esse argumento é perfumaria porque os salários mais altos seriam exceção", rebate. "Ele toma as contratações na mão como manobra para burlar o concurso. A Associação era apenas uma fachada".
* Presidente da Associação Comunitária Venda da Lata -
Ao conversar com o Diário Popular, também na sexta-feira, 13, Daniel Fonseca de Oliveira afirmou desconhecer o número de trabalhadores contratados e o valor pago. "Eu só assinava o cheque", diz e sugere que o Diário Popular procure o contador da entidade. E, ao ser questionado sobre detalhes do funcionamento do convênio, não nega: "Não entendo por que tinha o convênio. Peguei o barco andando. Não entendo para poder explicar". E, na hora de falar sobre o processo seletivo dos contratados, é direto: "A Associação era só laranja para área da saúde".
* Contador da Associação -
Lori Vergara Schiavon também não abriu o número de pessoas nem os valores pagos mensalmente, ao receber o DP em seu escritório, e afirmou não lembrar da existência de nenhum salário superior a R$ 4 mil. "Mas quem pode responder isso é o secretário de Saúde". O contador limitou-se a mencionar o prazo estipulado pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado com o MP para dispensarem os profissionais e realizarem concurso público: julho de 2013. Hoje, entretanto, ainda existiriam seis trabalhadores vinculados à Associação Venda da Lata.
* Secretário de Administração
- Humberto Porto afirma que a fase é de licitação para definir qual empresa irá realizar o concurso público, não apenas para área da saúde. Esta seria, inclusive, uma das razões para demora - argumenta o secretário. "A prefeitura precisou encaminhar projeto à Câmara de Vereadores para criação de cargos".
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Saiba mais
- O que diz a lei 8.429/92?
Artigo 11:
Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;
As penas:
Ressarcimento integral do dano, se houver; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos; pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
- O que diz a Constituição Federal?
Artigo 37:
A posse em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, ressalvadas as nomeações para Cargo em Comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
- Valores repassados à Associação Comunitária Venda da Lata (*)
2013: R$ 193,6 mil
2012: R$ 352,2 mil
2011: R$ 672,8 mil
2010: R$ 476,8 mil
2009: R$ 466,9 mil
2008: R$ 374,4 mil
2007: R$ 351,2 mil
2006: R$ 334,4 mil
2005: R$ 255,6 mil
2004: R$ 183,8 mil
2003: R$ 153,5 mil
2002: R$ 3,4 mil
(*) Fonte: Tribunal de Contas do Estado (TCE)
- A rede de saúde pública de Piratini
É composta por cinco postos de saúde, um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e uma unidade móvel. A cidade ainda conta com o Hospital de Caridade Nossa Senhora da Conceição.